terça-feira, 19 de junho de 2012

UMA REFLEXÃO IMPORTANTE (i)

Para que não se percam os frutos da civilização (i)
por Manuel Raposo [*]


Escolhi como título desta intervenção a frase "Para que não se percam os frutos da civilização" que é parte de um parágrafo de uma conhecida carta de Karl Marx a Pavel Annenkov (de 1846) em que Marx dá a sua opinião acerca de Proudhon, antes ainda de ter escrito a Miséria da Filosofia. O parágrafo inteiro diz o seguinte:
"Os homens nunca renunciam ao que ganharam, mas isso não quer dizer que não renunciem à forma social em que adquiriram certas forças produtivas. Muito pelo contrário. Para não serem privados do resultado obtido, para não perderem os frutos da civilização, os homens são forçados a mudar todas as suas formas sociais tradicionais, a partir do momento em que o modo do seu comércio já não corresponde às forças produtivas adquiridas." [1]
("Comércio" no sentido lato de relação, transacção)
Esta afirmação da necessidade histórica das revoluções sociais é acompanhada de uma crítica impiedosa ao desejo de Proudhon de conciliar as contradições do sistema capitalista em vez de pensar "no derrube da própria base dessas contradições". E Marx comparava essa tentativa de conciliação ao que sucedera nas vésperas da revolução francesa de 1789, afirmando os seguinte:
"No século XVIII uma multidão de cabeças medíocres estava ocupada em encontrar a verdadeira fórmula para equilibrar as ordens sociais, a nobreza, o rei, os parlamentos, etc., e no dia seguinte já não havia rei, nem parlamento, nem nobreza. O justo equilíbrio entre esse antagonismo (conclui Marx) era o derrube de todas as relações sociais, que serviam de base a essas existência feudais e ao antagonismo dessas existências feudais." [2]
Marx mostra aqui como são inúteis as tentativas de conciliar os termos irredutíveis das contradições sociais quando elas chegam ao seu ponto culminante – isto é, quando as sociedades se abeiram do seu termo histórico.

A ideia que trago a este debate é a de que a actual crise capitalista é uma radiografia do estado terminal a que chegou a civilização burguesa. De que não estamos a passar apenas por mais um ponto baixo de mais um ciclo do processo produtivo, mas estamos a viver a falência do sistema produtivo capitalista que chegou a um limite, que entrou na sua fase senil.

Com isso está em causa todo o edifício social que assenta nesse sistema produtivo. As contradições em que o capitalismo está enredado não podem ser resolvidas dentro dele próprio; só uma revolução social o pode fazer da única maneira viável: pondo fim às relações sociais capitalistas.

Consequentemente, a acção do comunismo marxista, tem de ser guiada por este propósito se quiser ter um papel na transformação social que está em gestação.

Passo aos argumentos.

II

O discurso dominante sobre a crise procura encerrar o problema numa espécie de círculo de giz "económico". É a tentativa de absolver o sistema social capitalista. Na verdade, o que está em causa não é a "economia" (que é uma coisa que em si não existe), mas a economia capitalista; e a crise não é dos negócios, mas de uma civilização inteira.

Mas esta restrição da crise ao "económico" domina. E domina de tal modo que penetrou, ainda que sob formas modificadas, o senso comum e mesmo a esquerda.

O círculo de giz funciona.

Funciona, por exemplo, quando se trata o neoliberalismo como uma deriva mental duma fracção da burguesia responsável pela deriva material do sistema, aceitando a ingenuidade de pensar que uma qualquer ideologia possa alterar as leis de funcionamento do capitalismo;

Ou quando se atribui à globalização e à financeirização do capital a origem da presente crise mundial, em vez de ver nelas recursos a que o sistema deitou mão para atenuar e adiar a crise;

Ou ainda quando se cai na ilusão de que existem medidas políticas (nomeadamente medidas de política económica) que podem solucionar os problemas sem tocar no quadro do próprio sistema capitalista, esquecendo que os problemas existem e avolumam-se precisamente porque esse quadro se vai mantendo.

Creio estar aqui boa parte da razão pela qual o movimento revolucionário pelo socialismo não dá sinais de crescer, apesar da decadência do capitalismo. É este a meu ver o nó da situação: um movimento revolucionário bloqueado no meio de uma crise geral do sistema capitalista.

III

Se não é uma crise de negócios, nem uma simples deriva ideológica – então o que é a presente crise?

As correntes marxistas que me parece terem uma posição mais clara sobre o assunto chamam a atenção para o facto de as raízes do colapso financeiro de 2007-2008 remontarem aos anos de 1970. De facto, depois do crescimento impetuoso subsequente à segunda grande guerra, o ritmo de acumulação do capitalismo dos grandes centros mundiais foi sofrendo uma desaceleração. Com altos e baixos, mantém-se há perto de 40 anos com reduzidas taxas de acumulação. O estoiro de 2007-2008 (iniciado no coração do capitalismo mundial, é de notar) terá sido o desembocar deste longo processo. E este último trambolhão arrasta agora mesmo os novos centros de acumulação que entretanto se afirmavam – a China, a Índia, o Brasil – cujas taxas de crescimento sofreram quebras importantes.

Todo o sistema capitalista mundial está portanto em quebra, contrariamente à ideia de que se assiste apenas a uma transferência de poderes.

Quarenta anos de crise é coisa que parece contrariar a própria ideia de crise que, na acepção de Marx, é um momento, mais ou menos curto, de acerto de contas entre o excesso de produção e a escassez do mercado. Engels todavia fornece uma pista importante em dois momentos. Numa nota de 1885 à Miséria da Filosofia aponta a possibilidade de "a estagnação crónica [passar a ser] o estado normal da indústria moderna, apenas com ligeiras oscilações"
[3] . Também numa nota (talvez de 1886, segundo Maximilien Rubel) ao Livro III de O Capital , Engels insiste na possibilidade de os ciclos regulares (até então mais ou menos decenais) terem dado lugar a uma situação caracterizada por "uma alternância mais crónica, mais alongada, a uma melhoria relativamente breve e fraca dos negócios e a uma depressão relativamente longa e indecisa atingindo vários países industriais em momentos diferentes." [4]

Parece ser este o caso de hoje, com a agravante de o marasmo atingir o grosso dos países capitalistas ao mesmo tempo. Onde está a origem deste declínio arrastado?

Ao que tudo indica, num factor que acompanha e condiciona o processo de crescimento capitalista: a queda da taxa de lucro.

Socorro-me de três estudos, que me parecem dignos de nota, que chamam a atenção para a queda efectiva da taxa de lucro do capital, fruto precisamente, como Marx bem vincou, do progresso capitalista.

O francês Claude Bitot, em 1995, mostra que a taxa de lucro nos 25 países da OCDE foi decaindo à medida do desenvolvimento posterior à segunda grande guerra
[5] .

Outro francês, Tom Thomas, vinca o carácter crónico da actual crise, pegando na hipótese colocada por Marx de uma sobreprodução absoluta de capital
[6] .

Recentemente, em 2011, o norte-americano Andrew Kliman constata também a queda da taxa de lucro nos EUA ("um longo declínio iniciado na segunda metade dos anos 50"). Segundo ele, terá sido essa a causa que foi puxando para baixo os ritmos de crescimento e que tornou débeis as recuperações subsequentes à grande crise dos anos de 1970 e às várias crises dos anos 80 e 90 – acabando por fazer a cama ao colapso de 2007-2008
[7] .

A importância que vejo neste ponto de vista é que ele coloca a tónica não em supostas derivas ideológicas (neoliberal ou outra), nem na hipertrofia financeira do capital – mas no bloqueio da própria produção capitalista.

Numa situação em que o capitalismo vê declinar a sua força motriz, que é o lucro, todo o sistema social esgota o seu papel histórico, tornando-se então "um obstáculo ao desenvolvimento da produtividade". "Com isso", diz Engels, [o capitalismo] "prova, simplesmente, uma vez mais, que entra no seu período senil e que, cada vez mais, se limita a sobreviver".
[8]

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